Impacto da COVID-19 na vida das mulheres e Raparigas em Moçambique

As Dimensões de Género da COVID-19 em Moçambique

 

Por razões de calamidade pública, em Moçambique foi declarado o estado de emergência por 30 dias no dia 1 de Abril de 2020 por Sua Excelência o Presidente da República através do Decreto Presidencial nº 11/2020. O Decreto prevê alterações ao nível dos direitos, liberdade e garantias (artigo 3); define as medidas e as competências para a execução administrativa das medidas (artigo 4);

tipifica o crime de desobediência (artigo 6) e estabelece o que são os serviços essenciais durante o período de vigência do estado de emergência (artigo 8). Segundo a Ruth Castel- Branco o Decreto prevê uma série de medidas restritivas orientadas para a contenção da propagação da COVID-19. Estas incluem a proibição da realização de eventos públicos e privados; a rotatividade laboral; e o encerramento de estabelecimentos comerciais, de diversão e equiparados, ou pelo menos a redução da actividade. Ela refere ainda que existe uma ambiguidade perigosa na redacção do Decreto sobre como se tomarão neste período as decisões punitivas às transgressões ficando   estas ao critério da Polícia e das restantes Forças de Defesa e Segurança.

Apesar dos números conhecidos de pessoas infectadas no país não serem até agora particularmente alarmantes a situação de Moçambique pode-se tornar rapidamente muito complicada. Com base em estudos disponíveis se o governo não tomar as medidas de contenção necessárias a situação poderá ficar descontável e numero de mortes poderá superar  a Espanha e Italia.  Este panorama mostra que a situação está muito para lá da capacidade instalada dos sistemas de saúde no país, mesmo conjugando os públicos e os privados.

É preciso salientar que em Moçambique

Os riscos de infecção por corona vírus para as mulheres, além de extremamente elevado e específico, terá trágicos impactos nas famílias e nas comunidades que dependem, em grande medida, do trabalho e do rendimento delas.

Moçambique apresenta vários factores específicos que é preciso ter em consideração, não apenas para avaliar melhor as condições de propagação da infecção e da doença, mas também para desenhar medidas de contenção e acautelamento da saúde pública, especialmente das mulheres e das raparigas que não ficam protegidas de forma inequívoca pelo Decreto Presidencial sobre o Estado de Emergência.

Identificam-se aqui aqueles factores que nos parecem essenciais destacar:

  • Num país onde a maioria são mulheres, sobretudo jovens, a prevalência de uniões forçadas e prematuras das meninas é uma das mais elevadas do mundo; a infecção pelo HIV é superior a 13% e atinge 3 vezes mais as mulheres do que os homens; onde a violência praticada contra as mulheres atinge níveis muito elevados; onde apenas 1,4% tem escolaridade de nível secundário e em meio rural 71,6% são analfabetas; em que cabe às mulheres a provisão de alimentos e o cuidado com os menores e idosos.
  • Moçambique tem cerca de 28 milhões de habitantes e conta apenas com 473 médicos dos quais mais de 400 são estrangeiros. Existe menos de uma Unidade Sanitária por 10.000 habitantes, revela um estudo do Ministério da Saúde. O inventário, realizado pelo Instituto Nacional de Saúde, revela também que 19% das 1.643 unidades sanitárias não tem energia eléctrica, 12 % não dispõe de fonte de água dentro ou no recinto da unidade e que 21% não tem casa de banho para pacientes.
  • As dezenas de milhares de emigrantes na República da África do Sul onde a doença já se espalhou de forma dramática e o seu regresso, em massa, a Moçambique sem que se determine quem pode estar infectada/o é um risco especialmente grave sobretudo para as mulheres e as crianças das famílias que os recebem neste momento;
  • As populações atingidas mais duramente pelos desastres ambientais no ano passado, ciclones Idai e Keneth, ainda não têm a sua situação totalmente regularizada em termos de domicílio, abastecimento de água e outros bens essenciais assim como as culturas alimentares são ainda muito incipientes e em muitos casos largamente insuficientes para uma nutrição básica. Estes elementos tornam estas pessoas particularmente vulneráveis à infecção pelo Corona Vírus;
  • Os conflitos militares no centro e norte do país estão a provocar a destruição de infraestruturas essenciais (pontes, estradas, postos de saúde, escolas, postos administrativos), a fuga de famílias para lugares seguros, o corte no abastecimento de bens prioritários à vida, o aumento drástico da concentração populacional nas sedes provinciais ou de distrito; o medo e o pânico generalizados; a normalização da violência como método de resolução de Esta situação faz com que estas populações fiquem especialmente vulneráveis à contracção da COVID 19;
  • Muitas mensagens sobre modos de prevenção não chegam às populações. A pluralidade linguística do país, a sua extensão territorial, a ausência de meios de comunicação de massas (rádio, televisão, telefone celular, jornais) e a fraca capacidade dos serviços do Estado em muitas zonas do país, nomeadamente nos meios rurais e remotos onde se concentra uma boa parte da população, introduz mais um factor de risco em situação de pandémica e alarme da saúde pública;
  • Moçambique tem uma economia muito dependente da ajuda externa. Não existe praticamente tecido industrial sendo o país totalmente dependente do exterior no que respeita a produtos manufacturados. Isso significa uma enorme fragilidade perante alterações drásticas da economia global e regional. Em caso de calamidades o país tem profundas dificuldades em responder adequadamente aos desafios que lhes são

Consequências directas na vida e na saúde das mulheres e raparigas

Além de todos os riscos associados à propagação do Corona Vírus identificados acima, o estado de emergência e as regras de confinamento e de restrições às actividades económicas e da mobilidade desdobram-se em vários impactos com uma especial incidência na vida e nos corpos das mulheres. As mulheres não param de menstruar, de engravidar de cuidar das suas famílias, de enfrentar a escassez crescente e a violência. Às mulheres continua a caberem as tarefas de cuidar das crianças, de procurar medicamentos e comida nas machambas. As mulheres e as meninas continuam a ser as pessoas mais susceptíveis aos abusos e à má-nutrição porque as crenças e as práticas culturais não se modificam. Pelo contrário, costumam acentuar-se em contextos de emergência social. Deste modo, sabe-se que os impactos de género, nomeadamente, na vida e na saúde das mulheres e raparigas são vários e importantes:

  1. O aumento da violência em contexto doméstico e no espaço do trabalho (sobretudo o trabalho doméstico);
  2. O aumento da possibilidade de violência (roubos, ataques sexuais) relacionada com a mobilidade das mulheres quando se deslocam para irem às suas machambas, pequenos negócios, compras, prestação de auxílio;
  3. O aumento das infecções por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis por falta de protecção, relações de poder desiguais na vida sexual, aumento da prostituição para obtenção de renda ou recursos, retorno de familiares emigrados infectados;
  4. O aumento da sobrecarga do trabalho não-pago no contexto da família e da comunidade pelo fecho de todas as infra-estruturas públicas de apoio (escolas, creches e outras) e porque o confinamento no domicílio, sobretudo nas cidades e vilas, não permite o apoio familiar ou de vizinhança;
  5. O aumento do abuso de poder sobre os corpos e a vida das mulheres por parte das forças de segurança uma vez que alguns direitos e garantias estão restringidos;
  6. O aumento da pobreza por perda do emprego, restrição drástica das actividades económicas, e ausência de medidas de segurança social proporcionados pelo Estado;
  7. O aumento dos riscos de infecção por falta de protecção adequada no trabalho (especialmente para profissionais de saúde, da alimentação e trabalhadoras domésticas);
  8. O aumento da má-nutrição por escassez de alimentos e pelas regras culturais que deixam as mulheres para o fim no acesso aos recursos e aos alimentos e que piora de forma trágica em caso de calamidade pública;
  9. O aumento da morbi mortalidade materna devido as limitações no acesso aos cuidados adequados de saúde;
  10. Ausência das mulheres e das suas perspectivas e necessidades, sobretudo das mais atingidas, nas análises dos problemas da nação e na formulação de políticas e tomada de decisões tanto no período de emergência e pós- emergência;

 

Posicionamento das Mulheres e Raparigas

Todas nós mulheres estamos empenhadas em contribuir, das mais diversas formas, para o enfrentamento dos problemas causados no país pela pandemia pelo novo Corona Vírus.

Face aos problemas e dificuldades que se apresentam ao país e em especial às suas mulheres e raparigas consideramos que é muito importante tomarmos uma posição pública sobre a situação e esperamos que o governo:

  • Reconheça o especial contributo das mulheres, do seu trabalho, do seu empenho para a luta, tanto na esfera pública quanto privada, contra a Covid 19 e os seus impactos na sociedade moçambicana;
  • Recusar a ideia de que one size fits Isso significa reconhecer que esta calamidade atinge de maneira diferente mulheres e homens e que, em muitos casos, o impacto na vida das mulheres não é apenas desigual, mas é mais violento, atingindo-as e a todas as pessoas que dependem delas. Por esta razão, as respostas têm que ser diferenciadas e respeitar as especificidades dos grupos sociais a que se referem.
  • Implementar a paridade entre mulheres e homens em todos os processos de análise, compreensão do problema e na tomada de decisões relativas ao presente estado de emergência como também nos processos subsequentes de recuperação da economia, da normalização da vida cívica, política e cultural do país. Consideramos que a paridade só é atingida quando há a integração de mulheres de várias gerações, dos vários sectores da sociedade (sociedade civil, estado e economia), de todas as províncias e com diferentes tipos de competências.
  • Implementar medidas de protecção especial para as mulheres e meninas vítimas de violência (física, sexual, económica e psicológica) a que estão cada vez mais vulneráveis, em especial, em épocas de conflito e crise como

 

Nossas Recomendações

Reconhecendo a gravidade da situação e da possibilidade de prolongamento das suas ondas de choque na vida das mulheres e raparigas recomendamos que sejam implementadas medidas de curto-prazo e medidas de médio e longo-prazo para o enfrentamento dos desafios trazidos por esta pandemia.

Sem pretender ser exaustivas propomos como essenciais as seguintes recomendações a serem implementadas pelo estado em estreita cooperação com as organizações da sociedade civil, em especial, as de mulheres ou que trabalham com mulheres e raparigas:

 

De curto- prazo:

  1. a) Circulação da informação pertinente e validada pela comunidade científica sobre os riscos decorrentes da pandemia e das medidas de prevenção que as pessoas, em particular as raparigas e as mulheres, podem e devem tomar. Esta informação deve poder circular em várias línguas nacionais e através de vários meios de difusão: mensagens SMS, rádio, televisão, cartazes, entre outros. Isto implica disponibilizar fundos às OSC em colaboração com universidade e centros de pesquisa para a elaboração de material adequado e sua distribuição junto das populações de todo o país.
  2. b) Criar um número de telefone emergência, acessível por SMS, para denúncia ou pedido de socorro em caso de violência. Esta medida pressupõe a transferência de recursos para OSC em colaboração com as companhias de tefonia móvel e as estruturas governamentais para atendimento dos pedidos e implementação de medidas de mitigação como o afastamento imediato de mulheres e meninas dos agressores;
  3. c) Garantir os direitos e garantias constitucionais que não devem ser inibidos pelo estado de emergência, através de uma fiscalização efectiva e democrática, acompanhada pelo governo e pelo parlamento, da acção das forças de segurança, policiais e militares;
  4. d) Estabelecer regras (jurídicas e sociais) de protecção do emprego (proibição do desemprego) e das actividades de geração de renda (infra-estruturas de segurança sanitária) a quem precisa de trabalhar obrigando as empresas a assumir a sua responsabilidade social;

 

De médio e longo- prazo

  1. e) Iniciar um processo de reflexão nacional, com paridade de géneros, sobre o modelo de desenvolvimento de modo a permitir no futuro a justiça social baseada na justiça de género; a soberania alimentar; a conservação da biodiversidade; a preservação dos recursos naturais para benefício de todas e todos as/os moçambicanas/os; o combate às alterações climáticas e ao desenvolvimento de um estado com capacidade redistributiva e de protecção social de todas/os as/os suas/seus cidadãs/ãos.
  2. f) Com a participação paritária de mulheres e homens provenientes dos diversos sectores da sociedade moçambicana, populações, lideranças locais, líderes religiosas/os, intelectuais, jornalistas, pessoal de saúde e educação, empresas e outros agentes, um amplo diálogo nacional com vista a uma paz efectiva e duradoura. Pois apenas em paz se pode garantir o futuro das gerações e uma luta vitoriosa contra qualquer pandemia presente ou futura.

 

Resistimos para viver, marchamos para transformar!

07 Abril de 2020

 

 

Descrição

As Dimensões de Género da COVID-19 em Moçambique

Data

2020

Categoria

Direitos Humanos
Igualdade de Género